sexta-feira, 6 de agosto de 2010


A natureza espanta a ciência:
nosso afastamento das forças fundamentais
e o ‘caso dos índios desconhecidos’

Que sutileza dos enquadramentos espaço-tempo terem reservado para este período do ‘novo’ século, ainda um espanto, herdeiro dos espantos do século XVI, frente a cenas cabíveis para os 1500 de então, não fossem os trajes e a tecnologia traírem as mesmas feições afectadas dos ‘descobridores’!

Mais que a satisfação da curiosidade científica ou do encontro com supostos elos perdidos da civilização, o espanto geral das comunidades globalizadas, dos aparatos de segurança e controle sanitário e populacional, a vigilância dos territórios perdidos nos confins límbicos da Amazônia... e, ainda, o espanto mesmo dos eco-ficcionados, ‘greem peaces’ de toda ordem e controle, como de graduações de seriedade.

Nenhum de nós, na verdade, escapou ileso a este encontro (ou, ‘quase encontro’, como ainda querem os índios, tentando esquecer a abertura que trouxe este ‘possível’ prenhe de riscos...).

Não conseguimos localizar, com precisão, como fomos relapsos o suficiente para deixarmos que se esgueirasse para a atualidade, em pleno século XXI, uma comunidade indígena inteira! Sem que tivéssemos notícias de sua existência ou extinção, traços de sua localização, lendas propagadas como as de uma ‘Ilha Desconhecida’: uma comunidade vivendo na floresta, de modo autônomo, auto-sustentável, preservados num ‘antes’ extemporâneo, em seus ritos, crenças, afazeres, guerras e paz, crescimento e preservação da tribo.
Ainda assim, invisíveis até agora. Onde localizar os efeitos de sua existência ou pistas de sua passagem na floresta?

Ao tentarmos examinar e analisar nosso espanto à luz dos fatos ‘descobertos’ seguimos, mesmo que sem perceber, os indícios que o corpo percebe neste jogo: é sempre pelos efeitos que podemos ter pistas da passagem de um fluxo sobre uma superfície, as marcas deixadas como pegadas que guiam a produção de clareiras à certos saberes. Mais intrigante é que, através da observação atenta da passagem deste encontro em nosso corpo, ficamos inertes diante da supremacia encobridora dos índios desta tribo: macroscópicos, molares, humanóides, bípedes visíveis a olho nu, deram-se à visão muito tempo depois que a Física e Astrofísica Modernas, através de suas experiências e aparatos tecnológicos incríveis, conquistassem visibilidades nanométricas ou astronômicas.

Como conceber que o mundocorpo nos alerta para a existência insuspeita de inúmeros desconhecidos, invisíveis, indizíveis, imprevisíveis corpos, mundos, acontecimentos através mesmo de nossos corpos, cheios de surpresas e ações inesperadas, prenhe de poder estético para criações diversas...

Como conceber um viver coletivo, autônomo e auto-sustentável, que exista em meio a um ecosistema sensível e continuamente ameaçado como estes confins da floresta, sem que haja rastros das produções e produtos, dos ‘restos’ e dejetos desta comunidade? Como ela perdura no tempo e na história, como são seus modos e fazeres? Demasiado animais para estabelecer fronteiras precisas com o humano? É por indiferenciação do mundocorpo que o homem se torna invisível e inacessível à sensibilidade humana no mundo?Indiferenciada porque parte da floresta? Parte da floresta, por isto por ela encoberta? O acontecimento reverberado neste encontro põe o corpo em estado de alerta, a experiência da velocidade absoluta vivida na viagem nômade: o tornar-se tribo invisível como os yanomamis na floresta – como já nos alertou Caetano – a Ilha Desconhecida de Saramago, produzida pelo desejo.

Desafio existencial do humano nesta mistura de heterogêneos. Exatamente: traços, rastros, efeitos, diagramas pontilhados, movimentos... efeitos da passagem...

O corpo é natureza. Quando nos separamos do mundo (ou natureza), arriscamos deixar escapar o exato movimento das forças: um acontecimento que contamina vários campos do conhecimento, abertura a outros possíveis. Para nós talvez ainda, invisíveis, indizíveis, insondáveis.